OS CRIMES DO FIO ELÉTRICO

OS CRIMES DO FIO ELÉTRICO


Ainda menino, me intrigava qual seria minha profissão quando crescesse. Passava horas matutando. O meu mundinho pobre era sem energia elétrica e, portanto, sem televisão que era coisa de rico. Não havia muitas opções de lazer nos dias invernosos e as escapadinhas para a rua eram restritas pelos meus pais mesmo durante o verão.

A opção era me divertir lendo as fotonovelas e gibis que minha mãe comprava por centavos num sebo ali perto.

O Mickey era meu personagem favorito, principalmente nas histórias em que ele aparecia vestido de Sherlok Holmes, caracterizado por um cachimbo no canto da boca  com o Pateta fazendo as vezes de Sir Watson (os desenhistas e roteirista da Disney são fantásticos). Parecia uma premonição, porque depois no meu mundo real, eu também trabalharia com muitos patetas ... kkk

No meio daquela pilha de fotonovelas da Grande Hotel, Capricho e Sétimo Céu, eu viajava com as histórias das atrizes (e irmãs de sangue) Katiuscia e Paola Pitti, lindas de morrer!

Mas eu vibrava quando o livreiro sebento mandava junto as fotonovelas do investigador Jacques Douglas. O cara era fera. Desvendava um monte de crimes e era boa pinta, tipo assim o agente 007 estático impresso no papel preto e branco.

Pronto! Decidi que seria investigador. Até mandei cupons para o Instituto Universal Brasileiro para fazer o curso de investigador por correspondência, mas... (Do you like it? Yes, “likar nóis likamos, mas dinheiro que é good nóis num have”). 

E botei na minha cabeça que quando tivesse um filho faria uma homenagem a ele, apostando na argúcia do personagem. Bem, errrr, não deu muito certo, porque o piá puxou mais para o Pateta (perco o filho mas não perco a piada). Kkk.

Mais tarde me embebedaria com os contos policiais de Edgar Allan Poe, que instintivamente vieram a me influenciar literariamente e as vicissitudes de sua vida guardava alguma similitude com a minha. 

Edgard ficou órfão de mãe e foi abandonado por seu pai, porém foi acolhido por uma família rica que lhe deu estudos com os melhores professores da época. Mas tinha comportamento inquieto e indisciplinado, passando a maior parte desta época envolvido com mulheres e bebidas. Abandonou a universidade e começou a carreira de escritor. Eu também fui abandonado pelo meu pai, abandonei a universidade e cai no mundo profano tal qual Edgar Allan Poe. Mas depois o Barba me deu rumo... Rss.

Quando adentrei na carreira de promotor de justiça, jamais imaginaria que parte do meu sonho seria realizado, porque promotor também investiga para revolta dos delegados, que querem para si o monopólio da investigação.

O poder investigatório do Ministério Público é bem polêmico, dá pra escrever várias teses de doutorado. Não é uma coisa simples para desenlear numa crônica. Mas em rápidas pinceladas, sou favorável porque por uma série de fatores a polícia judiciária não investiga ou não o faz a contento. Se for falar todos os motivos, dá um tratado e um monte de inimizades! Kkk.

Não é que a polícia não investiga: é que não existem métodos nos procedimentos e as vezes jogam para a plateia, apenas para satisfazer o público e também não estão aparelhadas adequadamente. Seus resultados estão mais ligados à diligência e grande atividade pessoais dos valorosos policiais e delegados, mas quando faltam essas atividades, os esquemas policiais falham. Além de que a carreira policial não é protegida por prerrogativas e não é difícil imaginar que os poderosos se beneficiam disso. Aí sobra para a tríade PPP, ladrão de botijão de gás e bicicleta... Rss.

Basicamente as investigação são encerradas no bojo do inquérito policial, que é um caderno inquisitorial que começa com o B.O. e termina com o relatório final do delegado. E o promotor de justiça recebe e faz denúncia. Ou devolve à delegacia de origem requisitando diligências imprescindíveis ao oferecimento da ação penal.

Entretanto, as provas tendem a desaparecer se não diligenciar no ato, no flagrante etc. Depois fica difícil, salvo quando o “iter criminis” deixar rastro documental ou que a perícia possa desvendar.

Quando fui designado como substituto no Tribunal do Júri, observei que os titulares e promotores antigos mandavam para mim as causas mais difíceis, com provas frágeis e tendentes a resultar em absolvição pelos jurados. Ou seja, nem advogado e nem promotor gostam de “perder” júris. Kkk. 

Grande bobagem porque ali no tapetão do júri não há falar em ganhar ou perder. Sempre quem ganha é a sociedade que julga seus semelhantes, cabendo ao promotor e advogado mostrarem suas teses de acusação e de defesa, respectivamente, e a sociedade acolhe a tese mais apropriada naquelas circunstâncias. Demorei mais de uma década passa assimilar esse conceito.

Bem, inúmeras vezes peguei processos com inquéritos mal instruídos pelo polícia, com um monte de indícios e hipóteses não investigados. Aí como promotor de justiça tinha que se “virar nos 30” com aquilo que tinha na mão pra convencer os jurados...

OS CRIMES DO FIO ELÉTRICO: Fui designado para fazer um júri no qual um campesino era acusado de matar a companheira. A infeliz “consorte” foi encontrada morta em um sítio de um assentamento rural, numa capoeira logo após um mandiocal. A perícia havia encontrado entre o casebre e o local onde o corpo foi encontrado, no meio do mandiocal, um pé da sandália havaianas que ela calçava. Ou seja, foi morta no barraco e carregada, mas no trajeto caiu uma sandália do pé da vítima e o algoz não percebeu, comprovando o ditado popular que não há crime perfeito! 

Concordo: não há crime perfeito, o que existe é crime mal investigado! 

E o réu usava como cinto da bermuda um fio elétrico encapado. O sulco no pescoço da vítima era compatível com o fio. E naquele sertão bravio, não havia energia elétrica e nenhum outro pedaço de fio elétrico.

Descartava-se o uso de cipó titica, pois este teria deixado resíduos vegetais no sulco e como não havia resíduos e nem arranhaduras, por óbvio foi um fio liso (encapado).

Mas o réu negava veementemente a autoria do crime. Não havia quaisquer outras provas, senão os indícios. Segundo o art.  239  do Código de Processo Penal, “considera-se  indício  a  circunstância  conhecida  e  provada, que,  tendo  relação  como  fato,  autorize,  por  indução,  concluir-se  a existência  de  outra  ou  outras  circunstâncias”.

Indício vem do latim index, que significa aquilo que aponta, o dedo que aponta para a verdade.

Mas para uma condenação penal exige-se prova cabal e insofismável e não meros indícios. Caso contrário, opera-se a dúvida em favor do réu em face do princípio “in dubio pro reo”. Raciocínio rápido: melhor um culpado solto por falta de provas do que um inocente preso com dúvidas lastreado em provas débeis.

Bem, esse processo caminhava para uma absolvição...

Mas aí os espíritos do Jacques Douglas, Sherlock Holmes e de Edgard Allan Poe baixaram em mim. Eu tinha convicção que fora aquele feladaputa quem matou a mulher... Mas mera convicção não é argumento para convencer a sociedade representada por 7 jurados. Se eu fosse pedir a condenação com base na minha convicção ia pagar mico! (Não sou nenhum D’Allagnol, tá? Rsss.)

Investiguei a vida daquele réu via Infoseg e outras ferramentas de investigação do Ministério Público. Verifiquei que há algum tempo não muito remoto, o réu havia sido absolvido de um homicídio em Santarém. Era também um feminicídio. Entrei em contato com os promotores paraenses e me mandaram imediatamente uma cópia digital do processo.

Quando abri meu e-mail e baixei o arquivo, fiquei estarrecido. O réu havia sido acusado de matar uma companheira em Santarém e o método foi por enforcamento, deixando sulcos compatíveis com fio elétrico, também em zona rural e sem testemunhas ou outras provas e por isso foi absolvido.

Bingo! Eu estava diante de um serial killer.

Juntei a cópia integral  nos autos e parti para a batalha.

Resultado:  veredicto de 7 x 0 e condenação a 18 anos de hotel estatal e comida de graça...

Viu o que dá ler contos criminais desde criança?

E aí, filhão? Agora você sabe as origens do seu nome!


Dr. Adilson Garcia

Dr. Adilson Garcia

Fórum Íntimo – professor doutor em Direito pela PUC- -SP, advogado e promotor de justiça aposentado.



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