Sonhos de um cidadão comum da Amazônia
Sou um cidadão amazonense, nascido em Manaus há 77 anos, e ainda guardo em minha memória o mais frequente conselho de meus pais, ambos nascidos no interior do Amazonas: “Filho, estude. Estude muito. O Brasil é o país das oportunidades e logo será um dos líderes mundiais”.
Ouvia isso numa época em que Manaus tinha menos de 100 mil habitantes, e a população não dispunha de energia elétrica 24 horas por dia nem de água tratada. O serviço de esgotamento sanitário era precaríssimo e todas as crianças e jovens estudavam em escolas públicas.
Hoje, já próximo dos 80 anos, tenho a convicção de que meus mais estavam absolutamente certos em relação à potencialidade do país. O Brasil é a quinta maior nação em grandeza territorial, rico em seu subsolo repleto de minerais, rico em fertilidade do solo, com a sexta maior população mundial, recursos financeiros abundantes e suficientes para alavancar o progresso e, ainda, o exuberante patrimônio natural da Floresta Amazônica, a maior floresta tropical do mundo e a região de mais significativa biodiversidade do planeta.
A previsão dos meus pais só errou no tempo. Tantas décadas depois do vaticínio, o Brasil continua patinando na direção de país do futuro e se consolidando como a nação das oportunidades perdidas. Não por culpa de seu povo, mas pelos erros e omissão de seus governantes.
O futuro é hoje. Meus estudos e experiência de vida me permitem a autoclassificação em uma categoria muito bem definida pelo escritor e dramaturgo paraibano Ariano Suassuna ((1927- 2014): “O otimista é um tolo. O pessimista é um chato. Bom mesmo é ser um realista esperançoso”.
Apesar de tudo, ainda alimento o sonho de ver o Brasil fazer uma fundamental correção de rumo alicerçada na ética, na moral e na honestidade, três coisas que o dinheiro não compra. Mantenho a expectativa de o país levar ao cotidiano de todos os seus cidadãos os ensinamentos inseridos no Hino Nacional: liberdade, patriotismo e igualdade fraterna. Espero ainda ver a realização dos versos de Cazuza (1958-1990): “Brasil, mostra a tua cara/e eu não vou te trair/confia em mim”. Esta canção é um retrato contundente da insatisfação social e política, permeada pelo sentimento de exclusão e desilusão com as promessas de um país melhor que nunca se concretizam para todos.
Minha geração assistiu ao Brasil governado por 23 presidentes diferentes (incluindo a Junta Militar de 1964 e dois interinos). O país teve sete moedas e 14 planos econômicos somente nos últimos 45 anos. Atingimos a maioridade democrática, entretanto o abismo econômico e a concentração de renda entre os brasileiros continuam gigantes. O que aconteceu, então?
Cabe indagar o que falta para a classe política, a imprensa, a sociedade, enfim, fazer uma reflexão profunda para enxergar que o processo político precisa ser alterado com urgência, dada a constatação de que não funciona. A retrospectiva dos últimos 35 anos comprova essa assertiva.
Nesse intervalo, o país elegeu cinco presidentes da República de diferentes perfis e ideologia. Destes, dois sofreram impeachment; um, após oito anos de mandato foi denunciado, julgado, condenado e preso por corrupção, teve posteriormente suas sentenças anuladas e voltou ao poder para o terceiro mandato; outros dois saíram do governo pela porta lateral devido à baixíssima popularidade, e o último não conseguiu se reeleger pela inabilidade no governo e outras razões que agora não importam.
O fato é que o país do futuro sofre no presente, conforme demonstram os indicadores sociais e econômicos. No Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), o Brasil caiu de 77º lugar em 2002 para a 88ª posição em 2023. No coeficiente Gini, que mensura a distribuição de renda, estamos estagnados há 35 anos na 6ª pior classificação no ranking mundial. Patinamos na Educação, com a 62ª posição no ranking do PISA (avaliação de matemática, língua portuguesa e conhecimentos gerais) entre 67 países avaliados e, agora, segundo o PNUD/Banco Mundial, ficamos pessimamente classificados também em criatividade. Não há como deixar de citar o líder abolicionista Frederick Douglass que escreveu que “Educação e escravidão são incompatíveis, o conhecimento torna o homem inadequado para ser escravo”.
A população vive com medo porque o país é o recordista mundial em número de homicídios, com 46 mil mortos por ano; um estupro a cada seis minutos – índice de 44,1 mil casos por grupo de 100 mil mulheres, a maioria crianças menores de 13 anos - alto índice de feminicídios; trânsito violento registrando a trágica média de 39 mil vítimas fatais por ano; e o avanço irrefreado das facções criminosas, em número superior a 70, dominando territórios e presídios, controlando o tráfico de drogas e de armas e decidindo quem vai viver e quem vai morrer.
Por outro lado, as desigualdades regionais se perpetuam, em grande parte provocadas por políticas públicas equivocadas. Exemplo disso: a renda mensal per capita dos habitantes das regiões Norte e Nordeste (R$ 1.160,00) é 36% menor do que a renda média nacional (R$ 1.828,00). A diferença é ainda maior se comparada com a renda per capita mensal da região Sudeste (R$ 2.237,00). Os brasileiros, portanto, não são de classe única, mas de classes diferenciadas em função do local onde nasceram ou vivem.
A concentração de renda é absurda, entre as seis ou oito piores de mundo. Hoje, 1% dos cidadãos mais ricos detêm quase a metade (49%) do total das riquezas do país. Cerca de 60% da população nacional vive com renda mensal bruta de até um salário-mínimo (R$ 1.412,00), mesmo valor dos proventos de 70% dos aposentados e pensionistas do INSS. Um degrau acima temos praticamente um terço (32%) dos brasileiros tem renda mensal que não ultrapassa três salários-mínimos.
O país vive à beira da estagnação. Nos últimos 35 anos, o crescimento médio do Produto Interno Bruto (PIB) foi de apenas 2,13% a.a., muito abaixo dos períodos anteriores pois de 1965 a 1988 o crescimento médio foi de 6,05% a.a., mesmo com carga tributária 45% menor que a de hoje.
Este, aliás, é outro entrave ao desenvolvimento. O Brasil está em 13º lugar dentre os 30 países com maior carga tributária do planeta. Cobra muito, porém devolve pouco em serviços básicos como educação, saúde, segurança e habitação. É o 30º, o lanterna, nesse quesito no Índice de Retorno de Bem-Estar à Sociedade (IRBES).
Temos motivos, ainda, para nos preocupar com outros importantes indicadores. Em termos de liberdade econômica – considerando-se estado de Direito, tamanho do governo, eficiência regulatória e mercados abertos –, o Brasil ocupa a 127ª posição no ranking de 186 países. Em liberdade de expressão o país é apenas o 87º colocado entre 161 países no ranking elaborado pela organização não-governamental inglesa Article 19.
Quando se fala em corrupção, nosso desempenho é igualmente vergonhoso. Nos últimos 25 anos, o país caiu 35 posições no Índice de Percepção de Corrupção do Setor Público, elaborado pela Transparência Internacional. Saímos da 69ª posição para a desonrosa e catastrófica 104ª posição. Ignoram-se solenemente os ensinamentos do deputado Ulysses Guimarães (1916-1992), autor de verdadeira aula de patriotismo: “A moral é o cerne da pátria. A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam. Não roubar, não deixar roubar, por na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública”.
Outro problema grave da nação é o gigantismo da máquina pública. Um setor que, apesar do tamanho, é ineficiente. Seu enxugamento – sem comprometimento da qualidade dos serviços que oferece – é possível mediante a redução de uma casta privilegiada e não-concursada, que onera os cofres públicos, reduzindo os recursos destinados às atividades-fim, estas sim, de interesse da população.
Falta também maior controle dos gastos públicos, o que exige uma revisão urgente de prioridades. Hoje, o Brasil gasta 32% a 33% do PIB (carga tributária), compromete outros 8% a 10% do PIB com o déficit público nominal e ainda concede renúncias fiscais da ordem de 4,8% a 5% do PIB sem observar os preceitos constitucionais de que tais renúncias devem ser concedidas para reduzir as desigualdades regionais e sociais.
Tropeçamos também na competitividade, quesito no qual o Brasil tem a 6ª pior colocação entre os 67 países de maior expressão econômica no mundo. E nosso Judiciário, apesar de altamente custoso aos cofres públicos, nos deixa apenas na 104ª posição no ranking de 134 nações em eficiência judicial.
E, como se não bastasse, o Brasil insiste em apostar no equilíbrio das contas públicas somente por meio do aumento da carga tributária, “solução” que penaliza a população, notadamente a mais carente. “Uma nação que tente prosperar com base em impostos é como um homem com os pés dentro do balde tentando levantar-se puxando a alça do balde”, dizia Winston Churchill (1874-1965), ex-primeiro-ministro do Reino Unido, em lição não aprendida por nossos governantes.
Relembro as lições de meus pais e não quero ver meus sonhos transformados em pesadelos. Sigo acreditando no Brasil, convicto de que não faltam à nação recursos financeiros, humanos ou naturais. Temos todas as ferramentas necessárias. Mãos à obra!
**Samuel Hanan é amazonense, e autor dos livros “Brasil, um país à deriva”, “Caminhos para um país sem rumo” e co-autor de “Brasil: que país é este?” juntamente com o prof. Ives Gandra Martins. Site: https://samuelhanan.com.br